sexta-feira, 19 de março de 2010

AVES E NAVES 02

Quando se quer falar de alguém que teria voado pela primeira vez, há sempre quem visite a mitologia grega e de lá retire a figura de Ícaro. Desde a antiguidade clássica, a idéia de voar estava associada a asas e assim o coitado do Ícaro as ganhou, coladas ao seu corpo com cera, produzida por abelhas, que, como sabem todos, têm asas e voam. A mitologia, como a religião, está cheia de imagens mágicas e milagrosas criadas por quem não precisava ter maior compromisso com o conhecimento e com a verdade científica, mas usava fantasia para criar fé e obter resultados reais, não raramente com benefícios para pessoas, individual ou coletivamente. Casos estes em que os fins justificam os meios.
Evidentemente, esse processo custou milhares de anos ao desenvolvimento humano, de modo que só no século XVIII o homem voou, de fato, pela primeira vez, não o fazendo com asas, mas com um balão de ar quente (vejam aqui, em AVES E NAVES 01), contrariando todas as expectativas. Antes desse vôo, contudo, o balão (ainda sem esse nome) voou sem ninguém a bordo, feito com papel, como ainda fazemos hoje, mas não podemos deixar subir livremente, sob pena de sermos presos, porque é um perigo deixar cair um deles sobre um telhado de casa ou uma refinaria de petróleo, por exemplo.
Houve época, contudo, em que os balões de papel enfeitavam os céus brasileiros no mês de junho, nas festas do Santo Antônio, do São João (sobretudo nesta) e na de São Pedro, com alguns poucos e pequenos prejuízos, quando raramente desciam sem controle numa casa, numa árvore ou mesmo numa fábrica (eram poucas e muito pequena a probabilidade de tal ocorrer). Considerava-se um baixo preço para o alto benefício da tradição de festas populares e do culto aos santos. A Igreja mandava.
Eu tinha meus quatro a cinco anos de idade, ainda me lembro da imagem, quando via o meu tio-avô Zuca (José) debruçar-se em uma grande mesa a desdobrar, estirar e cortar “papéis de seda” de várias cores, sob sifões de vidro (para que o vento não os espalhasse), depois colando-os de forma a compor enormes balões redondos, que eram dobrados e guardados até a noite de São João, quando iam todos para a porta da rua, em Periperi, no subúrbio ferroviário de Salvador, para vê-lo colocar a bucha que estava num vaso, embebida em aguarrás, numa estrutura de arame, na boca do balão, depois de estar este cheio de ar, nele colocado por quem usava abano de palha e força muscular nessa tarefa, enquanto a pessoa mais alta subia numa cadeira ou no muro para segurá-lo em sua extremidade mais elevada, de modo a mantê-lo na posição vertical, durante toda a operação.
Era o início da década de 1940, havia a guerra mundial, os americanos ocupavam a base naval de Paripe, ali perto (meu pai trabalhava lá) e o Zeppelin (balão dirigível alemão) voava por ali, quando passava pela Bahia (lembro-me de sua imagem no céu e da emoção que sentia). Não sei quem ficou com a tecnologia do tio Zuca, mas ela me foi passada na sua forma mais simples, de um balão poliédrico chamado “carioca”, para o qual bastava cortar a folha retangular de papel na sua diagonal e colar os triângulos resultantes pelo seu menor lado, para se obtrer cada um dos seis panos, que, também colados entre si, davam forma ao balão.
O fato é que, em 1948, com quase 11 anos, já morando em Salvador, em frente à Baía de Todos os Santos (na Ladeira da Jaqueira), eu fazia meus balões “cariocas” e os soltava da porta do nosso sobrado (número 18) e os via subir para atravessar a baía (vento sudeste) ou cair antes disso, no mar. A cidade inteira soltava balões que passavam muito alto por nossas cabeças, tão alto que nem sempre eram vistos. Uma das diversões da meninada era jogar “balão-beijo” (quem visse um balão antes dos demais tinha o direito de beijar uma das meninas disponíveis no grupo). Ainda havia aquele outro jogo, de somar quantos balões alguém via, com vitória para quem tivesse o maior total. Eram muitas dezenas deles, às vezes centenas, numa noite, dependendo de qual noite.
Tudo isto acabou, porque o “progresso” tornou essa atividade perigosa. É possível praticá-la com segurança em alguns lugares, mas é mais fácil para todos proibir “em geral”. Naquela época, falava-se em Bartholomeu de Gusmão, o Padre Voador. Eu cresci sabendo do seu nome, envolvido por informações falsas de uma “Passarola” que nunca existiu e na qual ele teria voado. Pura patriotada, mentira oficial que prejudicou a divulgação da verdade: o balão foi inventado por ele. Deixou-se de falar e ele hoje é um desconhecido em todo o Brasil. Pobre Brasil, que despreza seus heróis, seus cientistas, seus artistas, seus escritores. Nossos jovens quase só conhecem jogadores de futebol e cantores de música de carnaval, que têm os respectivos méritos, mas quase sempre estão preocupados apenas com o dinheiro que ganham.
Para continuar com este assunto, voltem às sextas-feiras.