sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A FILHA DO DIABO NÃO É MOÇA


Crônica

Quando eu era menino - cerca de 65 anos atrás - minha avó materna ensinava a família a viver com seus ditados e conselhos, além do que, introduziu em nossa casa um processo eficiente para se achar coisas perdidas. Consistia em deixar todos procurarem o que se tinha perdido dentro de casa, até não mais se ter onde olhar e meter a mão. Quando todos desistiam, ela aparecia  a andar e gritar que "a filha do diabo não é moça", querendo isso dizer que a diabinha havia perdido a virgindade de modo ofensivo paa o pai, que, muito aborrecido e verificando ser uma mentira, tudo faria para desmentir aquela falsidade lançada no ar, para desmoralizar  a ambos. Aí, a avozinha lançava o golpe de misericórdia, chantageando o demônio: "Para provar que ainda é moça, ela tem de mostrar o objeto - dizia qual - perdido". Envidava-se esforços na busca e nada acontecia. Ela então gargalhava, zombeteira: "Eu não disse que já não é moça? Só o diabo é que não sabe. Quem não sabia, fica sabendo agora. A filha do diabo não é moça".

Ninguém jamais pesquisou uma explicação para o fato, mas a verdade é que nesse ponto da busca, quando a zombaria era geral, alguém gritava: "Acheeeeiiii!" Aí, obrigatoriamente, todos respondiam: "É môôôça! É môôôça!" E cada um ia cuidar de sua vida, sem mais pensar no assunto. Dir-se-á que são coisas do passado, quando a superstição dominava e brigava com a fé, esta com suas orações e promessas, igualmente bem sucedidas. Aos santos, agradava-se com a oferta de velas e missas. Ao diabo, irritava-se com ameaças de desmoralização.  Até hoje, evidentemente, ninguém jamais descobriu quem é a filha do diabo, mas o processo sempre funcionou e isso reforçava aquele teatro como solução para objetos perdidos. Além do que, todos se divertiam muito.

Há uma explicação científica, para o fato, Um objeto só é perdido dentro de casa quando alguém o coloca num lugar e sem prestar a devida atenção, depois não sabe onde o botou. Provavelmente, ao se armar o teatro e fazer a folia, a culpa se esvai e a mente se descontrai, de modo que os neurônios se abrem em relações mais amplas, lançando luzes mais intensas no panorama escuro da ignorância. O fato de termos aplicado esse processo em nossa casa, nesta semana, depois de 24 horas sem se encontrar as chaves do carro numa penca única - o veículo felizmente na garagem - levando-nos a encontrá-las num lugar "impossível", fez-me repetir gostosamente que a filha do diabo é moça, sim, com toda a certeza.

Dizem que a crença em Deus implica inevitalmente na crença no Diabo. Assunto para muitas crônicas, por vários motivos, sob os mais diversos enfoques, ficamos a imaginar a figura de um anjo que tinha asas porque voava e caiu do céu. Sabe-se que os anjos ganharam asas ao tê-las pintadas nas paredes do Império Bizantino. As asas dos anjos são, portanto, criações humanas. Os próprios anjos têm formas humanas.  É uma prerrogativa do animal que recebeu um cérebro e tornou-se intelectual, criar, inventar, deduzir e também enganar. É intelectual porque tem inteligência. Esta vem com o cérebro, que, ao nascer, está quase vazio, retendo apenas na sua memória as poucas experiências vividas ou absorvidas no útero materno. É a educação que enche o cérebro e lhe fornece munição para atirar, cruzando informações para aprender novas coisas, num processo que se chama estudo e pode ser ampliado para se fazer pesquisa.

O que temos de ver imediatamente é que há grandes interesses para que o povo não seja educado, incapaz de usar sua inteligência por absoluta falta de dados. Temos de procurar saber do IBGE qual é a porcentagem da população brasileira, que, tendo cérebro, só o usa para a sobrevivência. Quem patrocina a pura sobrevivência do homem brasileiro é um criminoso que rouba o que o homem tem de melhor: o direito de usar sua inteligência, de ampliar seu horizonte e ter suas próprias idéias. Aí, quando aparece quem quer iluminar o cérebro do pobre, com educação, diz-se que isso é subversão ou que se está fazendo o jogo do Diabo, que é Lúcifer, isto é: o que faz a luz, o que ilumina.. O fato é que o homem nasceu com inteligência e a está perdendo na infância e na juventude, no Brasil. Está na hora de voltar a gritar que a filha do diabo não é moça, para que ela seja reencontrada.

Adinoel Motta Maia

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O DISCURSO DOS SURDOS


Crônica

Dizem que não se pode ser católico do jeito que se quer. A Igreja só consideraria católico quem reconhece a autoridade máxima do Papa, na Terra e segue as regras, preceitos, dogmas, da Igreja, in totum, isto é, catolicamente. Por outro lado, a Igreja Católica, Apostólica e Romana tem por tradição deixar suas portas abertas a todos os que decidam entrar, seja para seguir uma missa em toda a plenitude de sua liturgia, seja simplesmente para fazer umas fotografias, em viagem turística. Não se pergunta "quo vadis?" a quem penetra sem dizer coisa alguma.

Em verdade vos digo e provo científicamente que não existem dois seres humanos iguais, com as mesmas estruturas física e psíquica, as mesmas idéias, as mesmas propostas, as mesmas carências, as mesmas crenças e as mesmas certezas, entre outras mesmices impossíveis. Ninguém, portanto, é católico, sob esse ângulo de visão. Mas as igrejas estão cheias. Hoje, assisti a uma missa completa ao meio-dia, na pequena igreja da Paróquia de São Pedro, na Piedade, celebrada por um jovem e competente padre. Como sempre ocorre ali, havia música, cantos - a casa lotada - muita concentração nas palavras corretas que vinham do altar. Corretas porque ponderáveis, aceitáveis, por quem nada sabe e por quem pensa que tudo sabe. As palavras verdadeiras são aquelas que não podem ser substituidas sem levar ao erro, ao desvio, ao rumo incerto, ao destino duvidoso, por todos que as ouvem.

Na sua desigualdade, os homens não só são diferentes, mas também ocupam posições diferentes na estrada que percorrem e na escada que sobem, acumulando experiências, delas retirando dados e em seguida processando-os. É evidente haver mais conhecimento em quem está na frente e mais alto, o que significa mais evolução. Os que estão mais para trás e para baixo são assim como cordeiros que não conseguem se manter na estrada sem o cajado dos pastores. Estarão sempre ao rés do chão, porque não sobem escadas. Precisam da religião como do alimento que os permite mover-se. Sem a religião, estão perdidos nos campos, a disposição dos predadores. Com mais experiência, estudo e reflexão, aumentando sua consciência, pensando com mais dados em seu cérebro, já conversam com os pastores e recusam algumas práticas, fazendo filosofia, indo buscar novas idéias, que colocam em discussão, arrumando teorias para quem quiser ouví-las. Há quem suba esses degraus em uma ou duas décadas, enquanto outros precisam de duas ou três vidas inteiras. Ou mais...

O grande salto é o que se dá, do prazer de perguntar para a alegria de encontrar a resposta. Não uma resposta qualquer, mas a única possível, a única que se confirma experimentalmente. O problema é que esse cordeiro que se desgarra do rebanho e avança por conta própria, ao chegar à sua verdade, descobre que perdeu o pastor que o conduzia.  Hoje, ao meio-dia, encontrei um pastor que me pareceu aceitar a ovelha que se desgarra do grupo para avançar individualmente porque tem pressa em evoluir na senda. A ovelha que eventualmente pode voltar ao rebanho, para ouvir o pastor, mas não para continuar ali com as que se acomodam com o pouco esforço que fazem para progredir. Esse grande salto, do qual não há retorno, é o da ciência, quando se chega à certeza do que se ouve e se diz, porque se pode testá-la psíquica ou fisicamente. Porque se pode chegar sempre ao mesmo resultado, ao fim de uma experiência que se repete. Sem erro, sem falha.

A Igreja tem tratado milenarmente a Ciência como inimiga porque uma afirma a existência de Deus e a outra a nega, ambas erradas na sua proposta de Deus. O Deus da Igreja é um Ser que considera os homens como nós consideramos os animais, por exemplo, vendo-os e decidindo seus destinos. Ouvi um padre dizer que "Deus gargalhou perante uma ação humana". Há fiéis que precisam dessa figura de linguagem para compreender a desaprovação divina, mas outros há que acreditam ser Deus um ser que gargalha de fato, perante uma ação humana. O problema se agiganta quando as duas platéias estão juntas. Assim, a Igreja se recusa a falar apenas com os cientistas, separadamente da sua preleção aos leigos e a Ciência se recusa a falar aos fiéis religiosos. Insistem em ser uma única voz para todos e assim permitem que muitas ovelhas se desgarrem, para não perderem o trabalho que fazem com os que mais precisam de cada uma delas, isto é, os que estão na base da evolução e precisam de muito apoio para subir uns primeiros e difíceis degraus. Como é difícil para a criança recém-nascida engatinhar e arriscar-se nos primeiros passos.

Vamos pensar nisso, assim, antes de ofender a Igreja ou a Ciência. Não há como negar o gigantesco trabalho já realizado por ambas, na Terra. Chega o momento, contudo, de iluminar o campo geral e reconhecer, além da realidade física, a atualidade psíquica do tempo como duração da consciência, como as outras três dimensões do espaço são marcadas em três direções ortogonais dessa mesma consciência. Deus, afinal, é a Consciência Universal. Nada menos do que isso. O Nada como tudo começou...

Adinoel Motta Maia

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

VIOLÊNCIA E LEI DE DEUS


Crônica

Acordei ontem, acordo hoje, acordarei amanhã, com notícias terríveis na televisão. Nunca imaginei ver uma passeata de policiais portando cruzes brancas, pedindo proteção, porque noite após noite, madrugada após madrugada, estão sendo alvos não exatamente dos bandidos estabelecidos, mas de quantos aceitam missões eventuais, como mercenários, para matá-los. Se os próprios agentes da Polícia, que se considera como Segurança Pública, estão desprotegidos, o que dizer de nós, cidadãos contribuintes, que pagamos ao Estado (municipal, estadual e federal) para ter, entre outros, esse serviço?

Ao contrário do que seria sensato, a mesma emissora de televisão, no mesmo programa de notícias, mostra o movimento nas ruas e nos shoppings da cidade, com matérias especiais que induzem ao consumo, às festas e às viagens, como se tudo estivesse na melhor das condições, com o objetivo claro de estimular as vendas em geral, inclusive dos produtos anunciados nos intervalos desses programas. "Pior é na guerra" - diria a minha avó. Não é. A guerra que se vê estabelecida no Oriente está matando menos do que a nossa Paz. "É o Fim do Mundo" - dizem muitos. Também não é, porque o aumento da população é muito maior do que a quantidade de gente que morre.

Podem todos ter certeza de que a Mãe Natureza nunca perde, porque a perda está prevista, é consentida e faz parte do processo de evolução. Suas leis são poucas, mas inalteráveis e impostas com todo o rigor, doa em quem doer. Se alguém duvida, tente jogar-se do Elevador Lacerda sem pára-quedas e ver se há oração que o impeça de morrer. Quem nunca abriu uma Bíblia, que o faça agora e leia apenas o primeiro versículo - a primeira frase - do primeiro capítulo do primeiro livro, o "Gênesis". Está escrito, ali:

No princípio Deus criou o céu e a terra.

Durante milênios, temos lido essa frase assim, com importante erro de tradução, porque a palavra que o seu autor utilizou e foi traduzida como Deus, não existe na lingua hebraica, a dos judeus. Escreveu ele: Elohim. Deus seria apenas El ou, num outro sentido, o do Senhor, JHVH, que se pronuncia JaHVeH. Por séculos, provavelmente mais de um milênio, os exegetas (pessoas que interpretam e esclarecem um texto, especialmente a Bíblia) profissionais discutiram o significado de Elohim. Logo viram e ficou estabelecido que El significa Deus e im é um sufixo que indica o plural. Nunca foi encontrado o significado da partícula intermediária oh ou seu papel na formação da palavra.e assim os mais puristas contentaram-se com o plural de Deus, que contrariava a base do judaismo, isto é, o monoteismo, mas servia o Politeismo, a Mitologia e à teoria dos deuses astronautas. Ao fim de tudo, um grupo de exegetas optou por dar à partícula oh um sentido de atributo, ficando aquela primeira frase bíblica com a seguinte tradução:

No princípio, o atributo de Deus criou o céu e a terra.

Atributo significa "aquilo que é próprio de um ser". No caso de Deus, todo-poderoso, é o seu poder, a sua Lei eterna e dura, irrevogável e inalterável. Assim, sejam quais forem as leis dos homens, o seu Direito, nada valem perante a Lei de Deus, que nos manda experimentr e sofrer para aprender, assim como morrer para renascer e ter uma nova chance, tantas vezes sejam necessárias, para evoluir. Assim, o plasma das estrelas criou planetas minerais, que um dia tiveram uma de suas moléculas a se reproduzir, iniciando a vida e com ela, os vegetais, que se individualizaram e ganharam movimento próprio (anima = alma), desenvolvendo sua estrutura neural e formando a memória que permitiu o processamento de dados, assim surgindo a inteligência e os seres intelectruais, entre os quais o homem ainda é o topo, na Terra.

Chegamos, assim, a um ser, também criador, assim feito à imagem de Deus, como o camputador eletrônico foi feito à imagem do computador biológico, nosso cérebro e o robô sairá com cérebro próprio pelo espaço cósmico, feito à imagem do homem, alimentado com vida, como nós, os animais e os vegetais, pela energia das estrelas. Aí chegando, perguntamos se haverá algum fim do mundo.
É evidente que não, porque a Lei de Deus não tem dispositivo que permita isso. Ao contrário, nela, cada destruição promove uma evolução. O máximo que podemos destruir é a nossa civilização, com nossas leis permissivas, com nossos perdões viciosos, com nossa vaidade, com nosso egoismo, com nossa preguiça. A Lei de Deus determina o fim do que é imperfeito, em busca da perfeição. A escola onde se aprende isso é a vida, cada vida sendo um período letivo, podendo ser repetido eternamente, se não se aprende.

A conclusão óbvia é que a violência que medra em nossas cidades só terminará quando resolvermos enfrentar o problema com educação e não apenas com repressão. Chegamos a um estádio em que isso já é quase impossível e teríamos de esperar a Natureza destruir o cenário para começar um novo povoamento. Talvez possamos evitar isso, começando por controlar a população e colocar os interesses ontológicos à frente dos ideológicos e dos prazeres que viciam e degradam. Somos, já, suficientemente intelectuais para resolver esse problema, mas temos de saber que um dos recursos da educação é o sofrimento. Pode ser o último a ser empregado, mas deve ser considerado e aplicado. Assim manda Elohim, que mata populações inteiras.

Adinoel Motta Maia
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LEIA TAMBÉM O MANIFESTO DO APOCALIPSE, EM
E O ROMANCE QUE LANÇA A PSÍQUICA
a disciplina científica que estuda a consciência universal desde o nada
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sexta-feira, 9 de novembro de 2012

BAIRROS E ARRABALDES

Crônica

Há cerca de cem anos, a chegada do verão levava os soteropolitanos de melhor condição financeira para os arrabaldes da cidade. Os jornais, que ainda não tinham colunas sociais, anunciavam em pequenas notas, com título, a ida de uma família para o Porto do Rio Vermelho, de trem, que partia do Campo Grande, com armas e bagagem necessária a uma longa estadia, dita veraneio. Na direção oposta, ia-se para Itapagipe, carregando-se toda a tralha por terra no contorno da baía, desde o Comércio, atravessando-se a Calçada, os Mares, o Caminho de Areia, até o Porto dos Tainheiros. Em ambos os portos, mais de pescadores, construiu-se boas casas que ainda hoje se vê.

Ao longo dos anos, no século XX, enquanto o Rio Vermelho preservou-se, Itapagipe degradou-se. As regatas do fino esporte do remo, que reunia a aristocracia em navios para ver as competições dominicais com primeira página garantida nos jornais da cidade até os anos 30 e 40, foram substituídas pelas marinas - meras garagens de barcos - e isso é o que ainda tem de melhor por ali. A Avenida Beira-Mar hoje mostra umas poucas casas em ruinas como testemunho do ápice social daquelas bandas, vivendo agora na sua extremidade da Penha, de uma atividade gastro-cervejeira de fins de semana ainda movimentados pela frequência massiva à praia do Bogari.

Por anos a fio, a Prefeitura faz vistas grossas para o retiro do poder econômico que dominava e alimentava aquele arrabalde e o transformou em bairro industrial, chamando para lá os operários que acabaram ficando sem a indústria, que foi de refrigerantes e chocolates e cristais, por exemplo; sem os trapiches dos armazens gerais; sem o comércio que abastecia o subúrbio ferroviário; enfim, sem o dinheiro que dava vida própria à península  A invasão dos miseráveis - os alagados em palafitas - irresponsávelmente permitida pelo poder público e remediada com o aterro que criou novos bairros ditos populares, apenas inchou o músculo social, nítido sintoma da doença que ali se estabelecia como dormitório de problemas e não de cidadãos.

Cada novo prefeito chega como uma esperança, que agora se renova, porque o povo itapagipano votou para eleger o próximo a ser empossado em janeiro. Com a migração das fábricas para os centros industriais de Aratu e Camaçari, Itapagipe vem mostrando uma vocação para o turismo, quer pelas suas belezas naturais, quer pela sua história e seu folclore, quer pela sua posição privilegiada na Baía de Todos os Santos. A classe média que ali emerge já merece equipamentos urbanos de boa qualidade. Por que o Largo do Papagaio, por exemplo, não consegue ter a mesma qualidade do Campo Grande? Por que a Beira-Mar não é uma avenida, desde a Penha até a Calçada, como é a avenida desde o Farol da Barra até a Ondina?

Uma nova frente se forma, na área da saúde, desde que Irmã Dulce criou o Hospital Santo Antônio, no Largo de Roma. O que começou como um serviço assistencial para mendigos e outros marginalizados, transformou-se num movimento que atraiu para aquela área, desde farmácias até laboratórios e clínicas populares diversas que já tomam a Avenida Fernandes da Cunha na direção do Largo dos Mares e promete fazer dali um point na área da saúde, para lá se transferindo ou abrindo filiais, algumas empresas do ramo, assim assegurando a assistência médica que é exigida por quem quer e tem melhor qualidade de vida, inclusive quando faz turismo.

Já passou da hora, portanto, de se olhar para aquele outrora arrabalde de veraneio de gente rica como bairros de gente pobre que quer e pode ser classe média, integrando-o social e econômicamente a esta cidade de encantos e desencantos, que é Salvador.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O DIA DOS IMORTAIS

Crônica

Hoje, 2 de novembro, é o Dia dos Mortos, dedicado aos parentes e amigos já falecidos, propondo-se pranteá-los, homenageá-los com visitas aos respectivos túmulos, deixando-se ali uma flor, uma vela acesa ou apenas lágrimas. Como se ali estivesse a pessoa amada, admirada ou respeitada. Como se ela tomasse conhecimento daquela presença e daquela ação. Assim, o homem continua preservando e homenageando a matéria, mesmo após a sua falência, a decomposição do corpo em moléculas, em átomos e finalmente, em energia que se desprende totalmente dos seus resíduos, nada mais restando, além dos ossos, que são trasladados para uma caixa e guardados ad eternum.

Graças a esse procedimento milenar, podemos hoje descobrir e estudar o passado, desenterrando os restos mortais de reis e de plebeus, indo aqueles para os museus e estes para os laboratórios de pesquisa. Reis que construiram pirâmides e mausoléus monumentais, acreditando que dessa forma permaneceriam vivos na eternidade, preservando seus tesouros para recuperá-los em sua volta, numa outra vida. São, assim, os cemitérios tradicionais, ainda hoje, testemunhos da classe dominante de uma comunidade e de toda uma nação, que assim preserva os seus valores religiosos e artísticos nos sepulcros construídos e adornados com os símbolos de sua época.

Isto é uma coisa: a cultura da História com seus arquivos documentais, associados a tais testemunhos dos indivíduos que a fizeram e de certa forma atingiram a imortalidade, como seres materiais de carne e osso, conforme pretenderam. Outra coisa é a crença de que essas pessoas também alcançam a imortalidade em outro plano, dito espiritual, porque não material. Doravante, devemos utilizar, respetivamente, os termos psíquico e físico, para esses planos.

Os seres animais, isto é, os que têm alma (anima), a força que movimenta os corpos vivos, surgiram da evolução dos vegetais, que recebem a energia vital diretamente do Sol, pela fotossíntese e a energia para crescer e multiplicar a partir dos elementos químicos tirados do solo, através de suas raízes. Sem tais raízes, os animais desenvolveram estruturas móveis que recebem a energia vital do Sol através do ar que respiram e a energia para crescer, multiplicar e trabalhar a partir dos elementos químicos tirados do alimento ingerido cotidianamente.

Isso estabelecido, sabemos também que nos animais, surgiu e desenvolveu-se o cérebro e com ele o indivíduo, isto é, o ego, passando a evolução a se fazer não apenas em grupo, isto é, nas espécies, mas segundo a experiência de cada indivíduo, inicialmente dentro de colônias (formigas, cupins, abelhas) nas quais o indivíduo é a colônia, isto é, sua raínha; seguindo-se os seres maiores e mais complexos, em bandos (aves, peixes, etc), sob o comando de um dos seus componentes; até que o cérebro ganhou um adendo e apareceu o réptil, dono de si mesmo. Daí para os mamíferos, crescendo a autonomia e a individualidade, chegou-se ao homem e com este um cérebro mais desenvolvido, intelectual.

A evolução do ego, assim, atinge, no homem, o estádio de fazer e compreender símbolos e com estes criar a linguagem; estudar a natureza e explorá-la parcial e oportunamente; criar estruturas de abrigo e de exploração política, econômica e social; entre outras performances, ao fim das quais a cultural, científica e religiosa, em busca de conhecer a si mesmo, sua origem e seu destino, após a morte. Sua ignorância, neste campo, o tem levado a crenças de imortalidade não apenas do corpo ou da memória deste, como já vimos, mas também da alma (força que, no entanto, só existe no corpo, chegando com o nascimento e saindo na morte) e do ego, que também se conhece como "espírito". A ideia de imortalidade deste implica num fenômenno de reencarnação, que está em todos os povos, de uma forma ou de outra, menos nos cristãos, que preferem ter uma única vida material preparatória para uma vida eterna no  paraíso ou no inferno.

Crenças à parte, neste momento, queremos registrar apenas, para terminar esta crônica, no dia dos mortos, o fato de que morre o corpo, definitivamente, sem retorno. O que se guarda, na memória, é o ego. Lembramos de nossos parentes e amigos mortos, naquilo que ele fazia, como o fazia; o que dizia, como o dizia; o que queria e propunha... e em síntese, naquilo em que uma pessoa é única: a memória que temos dela, inclusive o seu nome. Em tudo isso, foi única. Quem não valoriza e preserva sua imagem, perante o mundo, a nação, a comunidade, a família, jamais será lembrado, depois de morto, porque simplesmente não deixou obra realizada nem registro do que fez. Este indivíduo realmente morre para sempre. De fato, não valeu a pena ter vivido, porque apenas passou. 

Adinoel Motta Maia